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Compliance Beyond Borders e os desafios de PLD-FT em Ecossistemas Digitais Multilaterais

A modernização dos pagamentos expandiu a economia para além das fronteiras geográficas, enquanto a regulação permanece organizada com base nelas. Nesse novo cenário, ecossistemas digitais multilaterais assumem papéis fundamentais na circulação de valores, mas ainda sem total convergência regulatória nos diferentes países onde operam. 

Este artigo analisa os principais pontos de atenção para PLD-FT nos fluxos cross-border envolvendo plataformas digitais globais, APMs e soluções de liquidação digital, como stablecoins. Também propõe caminhos de evolução para que inovação, inclusão financeira e integridade andem juntas. 

A Evolução do Risco na Economia Digital

A crescente integração de serviços financeiros em plataformas digitais transformou profundamente como o valor é gerado, distribuído e utilizado globalmente. Hoje, as relações econômicas não se limitam aos territórios onde os consumidores e comerciantes se encontram fisicamente. Usuários no Brasil adquirem produtos de vendedores em outros continentes, utilizando carteiras digitais conectadas a infraestruturas de liquidação localizadas em países diferentes. 

Esses fluxos, habilitados pela tecnologia, aceleram inovação, eficiência e inclusão. Mas apresentam um desafio importante para PLD-FT: a geografia econômica do pagamento tornou-se digital, enquanto a supervisão regulatória é naturalmente territorial. Essa transformação não indica falha ou atraso regulatório. Significa, apenas, que a velocidade da inovação exige evolução contínua e colaborativa dos modelos de governança, supervisão e controles. 

Limites do Modelo Tradicional de PLD-FT

Os programas de PLD-FT foram construídos com base em premissas que fizeram muito sentido no contexto anterior: relacionamento direto entre a instituição financeira e seu cliente, visibilidade concentrada no ponto de liquidação, supervisão principalmente local, dentro de uma jurisdição específica. 

Nos ecossistemas digitais multilaterais, no entanto, essas premissas deixam de ser suficientes. Neles, há múltiplos participantes distribuídos, com responsabilidades compartilhadas; liquidação ocorrendo em diferentes jurisdições, sujeitas a padrões regulatórios distintos; tokenização e formas de monetização indireta que tornam a finalidade econômica menos evidente; além de alta escalabilidade e operações em tempo real, deixando menor espaço para intervenção.

A questão não é que os modelos atuais deixaram de funcionar, mas sim que não foram desenhados para essa nova realidade e agora precisam evoluir para incorporá-la. 

Ecossistemas Digitais Multilaterais: Novos Habilitadores Financeiros

Essas plataformas, antes vistas como simples canais ou marketplaces, tornaram-se elementos estruturais do funcionamento econômico. Elas habilitam e moderam relações econômicas globais, organizam e protegem dados relevantes para o monitoramento de risco, conectam diretamente consumidores, comerciantes, meios de pagamento e provedores de infraestrutura. 

Em outras palavras, passam a ser pontos complementares de controle para fortalecer PLD-FT. A evolução já acontece em forma de ajustamentos regulatórios internacionais que reconhecem e valorizam o papel dessas plataformas na promoção da integridade financeira, sem frear a inovação. 

APMs e Pagamentos Cross-Border: Novas Formas de Visibilidade

Os APMs (como PIX, wallets e SPEI) e arranjos de pagamento digitais trouxeram benefícios importantes: redução de custos; aumento da inclusão financeira; velocidade e melhor experiência de consumo. Mas seus fluxos podem envolver múltiplas jurisdições, o que demanda coordenação regulatória e controles interoperáveis. 

Exemplo conceitual: usuário (país A) carteira digital (país B) liquidação (país C) comerciante (país D).

Cada participante vê parte do fluxo; nenhum vê tudo sozinho. O ponto positivo é que esse cenário abre espaço para uma nova lógica de colaboração e governança coordenada entre atores.

Geografia Econômica e Geografia Regulatória: o Descompasso Natural

O valor hoje circula nas redes digitais de forma fluida e a regulação, por sua vez, é necessariamente estruturada por país. Esse descompasso já é reconhecido pelos supervisores e vem sendo tratado por meio de iniciativas estruturantes, como a AMLA na União Europeia, a colaboração internacional orientada pelo GAFI e regulações com perspectiva de cadeia em países da Ásia, incluindo Singapura. 

Esses movimentos indicam que o mercado e os supervisores estão evoluindo juntos para desenvolver parâmetros capazes de acompanhar a velocidade das interações digitais.

Rails Digitais e Stablecoins: Eficiência que Amplia a Responsabilidade

Stablecoins têm ganhado espaço como meio de liquidação internacional, ampliando acessibilidade, competitividade e integração financeira global. Por outro lado, trazem novas formas de visibilidade transacional, muitas vezes apoiadas em mecanismos tecnológicos como KYT (Know Your Transaction) e ferramentas de análise blockchain (Chainalysis, Elliptic, TRM Labs).

Essas soluções identificam padrões de risco, avaliam exposição a endereços sensíveis, complementando o modelo tradicional de monitoramento, mas não substituem o sistema formal, fortalecendo-o em novas frentes.

Travel Rule: Transparência que Acompanha o Valor

A aplicação da Travel Rule a ativos virtuais materializa um princípio fundamental para PLD-FT: se o valor se desloca globalmente, a informação deve acompanhá-lo. Seu avanço aumenta a confiança nas transações digitais, especialmente quando alinhado à governança distribuída, cooperação entre participantes e interoperabilidade técnica.

O futuro aponta para combinações híbridas entre o sistema formal e novos rails financeiros, integrando dados e controles com equilíbrio.

Regulação 2.0: Colaboração e Interoperabilidade

O fortalecimento de PLD-FT em ambiente digital global passa por: 

  • Responsabilidade proporcional ao papel de cada ator (plataforma, wallet, PSP, adquirente, banco…) 
  • Interoperabilidade regulatória e tecnológica (APIs de Compliance, compartilhamento seguro de dados, Travel Rule) 
  • Supervisão contínua baseada em risco sistêmico (acompanhando o fluxo, não apenas o ponto)
  • Evolução coordenada entre mercado e reguladores (estratégia de parceria, não de contraposição) 

A integridade torna-se um projeto coletivo em que cada agente contribui com visibilidade e controles onde atua.

Conclusão: Inovação e Integridade no mesmo Caminho

Não se trata de escolher entre eficiência e conformidade. Os avanços tecnológicos trazem benefícios profundos, sociais, econômicos e de inclusão. O que se exige é que a informação certa esteja no lugar certo, os controles acompanhem a evolução dos fluxos, a supervisão continue eficaz, mesmo quando o risco se transforma. O futuro dos pagamentos é global e o futuro da integridade financeira será construído da mesma forma: com cooperação, tecnologia e governança conectada.

Sobre o Autor: Peterson Cis é Head de Compliance & MLRO, responsável por programas de integridade regulatória em mais de 20 jurisdições. Possui MBA e certificações internacionais em PLD/FT e Compliance pela ICA, ACAMS e CISI. Atua com foco em pagamentos cross-border, governança e mitigação de riscos emergentes em ecossistemas digitais.